Ali haverá pranto e ranger de dentes
O Inferno na Arte e na Filosofia da Idade Média
Conferência de encerramento do I Encontro Internacional e
II Encontro Nacional de História Antiga e Medieval de Imperatriz-Ma (UEMA):
Mito, Religião e Magia, no dia 20 de novembro de 2014.
In: MOURA, Fabricio Nascimento de (org.).
O poder imaginário: diálogos com a Antiguidade,
medievo e outras temporalidades.
Imperatriz: Ethos, 2016, p. 274-303
(ISBN: 978-85-66425-09-3).
Resumo: Análise iconográfica de afrescos medievais sobre o Inferno com o confronto dos textos bíblicos, filósofos e teólogos do século XIII. Por exemplo, Ramon Llull, em suas primeiras obras (Llibre de contemplació, Doctrina pueril) e Santo Tomás de Aquino (Compendium Theologiae).
Palavras-chave: Inferno – Arte Medieval – Ramon Llull – Dante.
Abstract: Iconographic analysis of medieval frescoes about Hell with the confrontation of biblical texts, philosophers and theologians of the thirteenth century. For example, Ramon Llull, in his early works (Llibre de contemplació, Doctrina pueril) and Saint Thomas Aquinas (Compendium Theologiae).
Keywords: Hell – Medieval Art – Ramon Llull – Saint Thomas Aquinas.
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O Juízo Final (Das Jüngste Gericht, c. 1467-1472), de Hans Memling (c. 1430-1494). Tríptico, óleo sobre madeira, 221 x 161 (painel central) e 223,5 x 72,5 (painéis laterais), Museu Nacional de Gdansk, Polônia. À esquerda de Deus (direita do espectador), o Inferno.
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Detalhe do painel da lateral direita de O Juízo Final (Das Jüngste Gericht, c. 1467-1472), de Hans Memling (c. 1430-1494). Tríptico, óleo sobre madeira, 221 x 161 (painel central) e 223,5 x 72,5 (painéis laterais), Museu Nacional de Gdansk, Polônia. Em destaque na cena, religiosos (tonsurados) que em vida foram fornicadores: estão com suas amantes sendo pisoteados (e elas estranguladas) por terríveis e monstruosos demônios, entre labaredas incandescentes, nus. Memling imagina a cena e a representa artisticamente com tamanha força que pode-se imaginar a intensidade do calor infernal. Seu Inferno é condizente com a imagem que os religiosos de então tinham, como, por exemplo, Dionísio, o Cartuxo (1402-1471), que apresenta o Inferno exclusivamente em termos de pavor e de miséria: “Tenhamos sempre perante nosso espírito o forno mais quente e mais em brasa, e dentro dele um homem nu, que nunca mais será libertado de tal tortura (...) Quão miserável ele se nos apresenta!”, De quatuor hominum novissimis (Opera, t. XLI, p. 545).1
I. Temor, medo!
Fill, per ço hages paor de l'infernal foc qui tots temps dura, ve a la fornal on fan lo vidre i al forn on coen lo pa, i considera per quant estaries una hora en aquell foc. On, si per tot lo món, qui el te donava, tu no estaries en aquell foc una hora, quant més deus tembre que per un delit temporal que lleugerament passa esties en lo foc infernal, qui tots temps dura!
Filho, para que tenhas temor do fogo infernal que dura eternamente, vai à fornalha onde fazem o vidro e ao forno onde cozinham o pão, e imagina ficar uma hora naquele fogo. Logo, se mesmo que eu te desse todo o mundo tu não estarias por um momento naquele fogo, mais deves temer que, por um deleite temporal que rapidamente passa, estejas no fogo infernal que dura por toda a eternidade!
RAMON LLULL. Doctrina pueril, XCIX. “Do Inferno”, 7.2
O filósofo catalão Ramon Llull (1232-1316) dedicou um capítulo de sua obra Doutrina para crianças (c. 1274-1276) ao Inferno.3 O livro, escrito para seu filho Domingos, é uma espécie de compêndio pedagógico infantil, manual para a vida, e o temor do Inferno a baliza na qual os medievais construíam seus tratados morais.4 Nesse aspecto, eles cumpriam à risca a admoestação de Eclesiástico 7, 40 (“Em tudo o que fazes, lembra-te de teu fim e jamais pecarás”). Pensavam em seus Novíssimos – as quatro últimas coisas que, no pensamento teológico-católico-medieval, acontecem aos homens: a Morte, o Juízo, o Inferno e o Paraíso. As duas primeiras, certas e universais; as duas últimas, para eles, excludentes, pois todos morrem e são julgados, todos vão, em definitivo, ou para o Inferno ou para o Paraíso (os que vão para o Inferno não vão para o Paraíso e, consequentemente, os que vão para o Paraíso não vão para o Inferno).5 Sem esse incisivo pano de fundo imagético, perspectiva transcendental, não é possível compreender a mentalidade medieval.6
No entanto – e para muitos de nós, hoje, enigmático – como os medievais não duvidavam da existência de um outro mundo, celebravam a cerimônia de passagem, a morte, com convicção, com a esperança de salvação (um dos poucos a compreender a amplitude dessa concepção existencial foi o historiador Georges Duby [1919-1996]).7 Seja como for como imaginemos essas certezas e dúvidas, a visão do Inferno esteve presente em praticamente todas as manifestações imagéticas – para o papa Gregório Magno (c. 540-604), Bíblia dos iletrados8 – durante toda a Idade Média a recordar aos incautos o que estava reservado a eles após a morte corporal (e para gáudio dos justos que procuravam viver uma vida correta neste mundo9).
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O Inferno. Frontispício do Beato de Santo Domingo de Silos (c. 1091-1109), folio 2. Enquanto Barrabás, na entrada do tetralóbulo infernal (à esquerda), trapaceia a pesagem das almas de São Miguel (localizado do lado de fora do tetralóbulo, na extrema esquerda da iluminura), no centro, em amarelo (cor da falsidade) está a representação de um dos sete pecados capitais, a avareza (a φιλαργυρία, philarguria, o amor ao ouro, ao dinheiro): mesmo no núcleo do Inferno, o ganancioso ainda tenta segurar os sacos de moedas. Acima, dele, amantes se abraçam na cama, embaixo das cobertas: seus antigos prazeres carnais são relembrados enquanto sofrem com as provocações de um demônio (Atimos) com uma enorme genitália verde.10
II. Temores teológicos: “Apartai-vos de mim, malditos!”
O Filho do Homem enviará seus anjos e eles apanharão do seu Reino todos os escândalos e os que praticam a iniquidade e os lançarão na fornalha ardente. Ali haverá choro e ranger de dentes. Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai. O que tem ouvidos, ouça!
Mt 13, 41-43.
Cristo anunciou que julgará os homens em dois momentos.11 Primeiro, individualmente, logo após a morte de cada um. Será quando o Juiz implacável selará o destino sempiterno de toda alma em Sua presença.12 Os que tiveram como única preocupação o desfrute dos bens terrestres, sofrerão eternamente as penas do Inferno; os que souberam suportar com resignação e esperança as desventuras desta vida, gozarão para sempre da bem-aventurança do Céu:
Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e cada dia se banqueteava com requinte. Um pobre, chamado Lázaro, jazia à sua porta, coberto de úlceras. Desejava saciar-se do que caía da mesa do rico... E até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Aconteceu que o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão.13 Morreu também o rico e foi sepultado.
Na mansão dos mortos14, em meio a tormentos, levantou os olhos e viu ao longe Abraão e Lázaro em seu seio.
Então exclamou: ‘Pai Abraão, tem piedade de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo para me refrescar a língua, pois estou torturado nesta chama’. Abraão respondeu: ‘Filho, lembra-te de que recebestes teus bens durante tua vida, e Lázaro por sua vez os males; agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado’.
Lc 16, 19-25.
No Além cristão-medieval há uma inversão da ordem terrestre: Lázaro, o miserável, que pouco ou nada tinha em sua vida carnal e muito sofria com seus tormentos seculares, foi regalado por Deus (representado por Abraão) com a maior das recompensas e tesouros: desfrutar de Sua presença por toda a Eternidade. Por outro lado, prestemos atenção à sorte do homem rico: ele, que se satisfizera em vida com a fruição de seus bens materiais (em especial a comida, pois era glutão – um dos sete pecados capitais), foi condenado ao Inferno e a padecer tormentos – e o pior não era o fogo, mas a pena do dano (a privação eterna de Deus).15 Passará o resto da eternidade a sofrer “aquele terrível sempre e aquele terrível nunca”16 que Cristo anunciara de forma tão incisiva:
E se teu olho te escandalizar, arranca-o: melhor é entrares com um só olho no Reino de Deus do que, tendo os dois olhos, seres atirado na geena, onde ‘o verme não morre e onde o fogo não se extingue’ (os negritos são nossos).
Mc 19, 47-49.
Cristo se vale de diferentes nomes: fogo inextinguível, trevas exteriores, onde haverá pranto e ranger de dentes, lugar de tormentos, fornalha de fogo, geena de fogo.17 O réprobo, condenado a padecer perpetuamente nele, sofre, sem qualquer esperança do consolo que jamais virá... O “verme” é o mesmo do profeta Isaías: “Porque o seu verme não morrerá e o seu fogo não se apagará” (Is 66, 24). Santo Tomás de Aquino (1225-1274) explicou que esse verme a que se refere tanto o profeta quanto o Evangelho é a consciência acusativa do danado por perder a graça que tão facilmente poderia tê-lo salvo.18
Ele sentirá o remorso da consciência, ruído inextinguível de respiração do moribundo, estertor suscitado pelo inefável bem que escapou de suas mãos e que, para sempre, há de atormentá-lo. O próprio condenado, vez após vez e sem fim, acusar-se-á por isso. A alma, mesmo espiritual, sofrerá a ação do fogo material, corpóreo, do Inferno, cuja função é a de prendê-la. Assim como fora retida em sua vida carnal pelo corpo, de forma análoga, será grande a humilhação ao ver-se apresada por algo que lhe é naturalmente inferior.19
Segundo julgamento: além do juízo particular, exercido logo após a morte de cada homem, Cristo presidirá outro, geral. Trata-se do último julgamento, o Juízo Final no Fim do Mundo. Quando o Filho do Homem vier em Sua glória, com todos os Seus anjos, sentará em Seu trono. As nações serão reunidas e os cabritos (pecadores) serão separados das ovelhas (inocentes); os primeiros à esquerda, os segundos à direita.20 Salvará Ele então as ovelhas, os justos, e condenará os pecadores:
Em seguida, dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer. Tive sede e não me destes de beber. Fui forasteiro e não me recolhestes. Estive nu e não me vestistes, doente e preso, e não me visitastes’.
Mt, 25, 41-43.
São passagens bíblicas fundamentais, claras, diretas e, sobretudo, fundadoras de todas as imagens medievais sobre o Juízo Final. O Cristo é incisivo: não se deve temer o que mata o corpo, mas o que destrói a alma e a envia para a geena (Mt 10, 28).21 O Cristo é taxativo: quem O renegar, será renegado diante do Pai que está nos Céus. O Cristo é radical: não veio para trazer a paz, mas a espada, pois contrapõe o homem a seu pai, à sua filha, à sua mãe, à sua nora e à sua sogra. Portanto, quem amar o pai, a mãe, o filho ou a filha mais do que a Ele, não será digno d‘Ele (Mt 10, 34-38).22
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O Inferno (c. 1410). Detalhe do afresco da Cappella Bolognini, Basílica de São Petrônio (Bolonha) de Giovanni di Pietro Faloppi (ou Falloppi, também conhecido como Giovanni da Modena [c. 1379-1455]).
A contundência bíblica do discurso de Jesus Cristo propiciou aos religiosos, à Igreja, patrocinadora da Cultura, das Artes, ensinar aos artistas, técnicos empregados para representar em imagens impactantes o mundo do Além, em iluminuras, em esculturas, em vitrais, em afrescos, aquilo que estava conforme o texto sagrado e que não pudesse ser considerado herético. Por isso, por todos na Christianitas serem irmãos em Cristo23, nenhum extrato social, nenhuma ordem, ninguém estava livre do julgamento final. Mais: na ótica medieval (sempre ela a balizar nossas interpretações), o fato de um condenado provir de um extrato social elevado era um agravante e, por isso, acarretava uma punição mais severa. Isso, por dedução do Livro da Sabedoria:
Ao pequeno, por piedade, se perdoa,
mas os poderosos serão provados com rigor.
Pois o Senhor do universo a ninguém teme.
Não se deixa impressionar pela grandeza;
pequenos e grandes, foi ele quem os fez:
com todos se preocupa por igual,
mas aos poderosos reserva um julgamento severo.
A vós, portanto, soberanos, me dirijo,
para que aprendais a ser sábios e não pequeis.
Sb, 6, 7-10.
Os medievais não eram igualitários. Para eles, todas as criaturas de Deus eram desiguais.24 Até mesmo aos Seus olhos: na Teologia, Ele ama todas as Suas criaturas. Todas elas têm um papel específico no conjunto de sua Obra, a Criação, mas as ama desigualmente, porque, em Sua Sabedoria divina, assinalou a cada uma delas um lugar hierárquico específico na harmonia do conjunto25 (do mesmo modo, Deus ama especialmente algumas famílias, como também, de modo especial, rejeita outras).26 Por viverem em uma sociedade estamental, não concebiam uma Eternidade que também não fosse, a seu modo, escalonada e hierarquizada, à maneira dos antípodas. Por isso, quem na Terra estava em cima, no poder (secular ou religioso), se caísse no Inferno, ficaria ainda mais no fundo.
Assim, com uma notável liberdade crítica judicativa, os pintores criaram cenas terríveis em que pessoas dos mais elevados níveis sociais sofriam os piores horrores do Inferno, consequência eterna de seus pecados cometidos no mundo. Pela soberba, pela cupidez, pela vaidade.
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O Inferno (c. 1410). Detalhe do afresco da Cappella Bolognini, Basílica de São Petrônio (Bolonha) de Giovanni di Pietro Faloppi (ou Falloppi, também conhecido como Giovanni da Modena [c. 1379-1455]).
Uma das imagens infernais mais impressionantes criadas pela arte medieval a respeito do Inferno é o afresco da Cappella Bolognini, na Basílica (gótica) de São Petrônio, em Bolonha (imagem 4). Giovanni da Modena (c. 1379-1455), seu autor, elaborou cenas angustiantes dos suplícios, certamente baseando sua geografia infernal na descrição da Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321). Não há espaço para analisar todos os grupos de danados. Selecionamos apenas um detalhe (imagem 5). Ainda com sua coroa, um rei tem as costas e as nádegas feridas por dois diabos com cabeças de javali (como os reis medievais apreciavam caçar javalis!); um homem é furado no ânus e assado, como um porco (com o espeto perpassando outro, que ainda sofre uma mordida de um dragão na cabeça). Acima, uma mulher e um religioso são feridos por cobras e, juntamente com um idoso, são flagelados por outros diabos. Deitada em uma pedra, à esquerda, uma apavorada mulher é atacada por outro demônio, que a estrangula, a sufoca com o joelho em seu peito, a esgoela, e enfia um espeto (aparentemente com carne) em sua boca.
Todos estão nus, indício da verdade revelada, desvelada. Ninguém oculta nada de Deus (1Sm 16, 7; Rm 8, 27).27 No século XV, a obra de arte ainda conservava uma característica tipicamente medieval: era uma oferenda, ajudava o fiel a entrar em comunicação com o invisível, no caso, com o que o aguardava, caso não fosse um bom cristão. A imagem do Inferno deveria despertar o terror sagrado, o arrependimento.28
III. Temores filosóficos
Aquest ordonament mateix, Sènyer, serà en infern, car aquells qui seran pus pecadors estaran en lo pus abís loc d'infern e.l pus luny de la vostra presència; e aquells qui no seran tan pecadors, estaran en loc on hauran menys de pena que los altres jussans; on, aquí seran rencs, segons que.ls pecadors són diverses, car los ergullosos estaran en un loc, e los homeiers en altre, e los descreents en altre, e los cobeus en altre, e.ls traïdors en altre, e los mentiders en autre, e los glots en autre.
Este mesmo ordenamento, Senhor [o do Paraíso] existirá no Inferno, pois aqueles que mais pecaram estarão no mais profundo abismo do Inferno e mais distantes de Vossa presença. E aqueles que não foram tão pecadores estarão em um lugar onde sofrerão uma pena menor que os outros inferiores. Lá eles serão aleijados, conforme a diversidade de seus pecados, pois os orgulhosos estarão em um lugar, os homicidas em outro, os descrentes em outro, os cobiçosos em outro, os traidores em outro, os mentirosos em outro, e os glutões em outro (trad.: Ricardo da Costa).
RAMON LLULL, Livro da contemplação, Volume Primeiro, Livro Segundo, cap. LIX, 12.29
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O Juízo Final (1306), de Giotto (1266-1337). Afresco, Cappella degli Scrovegni (Capela Arena), Pádua, Itália.
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Detalhe do afresco O Juízo Final (1306), de Giotto (1266-1337). Cappella degli Scrovegni (Capela Arena), Pádua, Itália.
Esse temor do juízo de Deus – e de suas conseqüências – foi uma importante baliza sobre a qual os medievais construíam seus tratados morais. Esse medo era considerado salutar, moralizante, pedagógico, algo que agia poderosamente para se evitar o pecado e praticar o bem. O embasamento era, naturalmente, a Bíblia. Por exemplo, no Eclesiástico: “O temor do Senhor expulsa o pecado; quem não tem este temor não poderá ser justo” (27-28); nada é melhor do que o temor do Senhor e nada é mais doce do que seguir Seus mandamentos (23, 37).30
As imagens filosófico-literárias que Ramon Llull oferece são muito intensas, semelhantes às penas infernais do Juízo Final de Giotto (imagem 6): lá horríveis serão os fedores de enxofre e de suor dos corpos; até os diabos sofrem! Ademais, as almas sofrem porque suas três potências (a memória, a inteligência e a vontade) estão em eterno conflito: a memória tem muito remorso de lembrar o Paraíso perdido, a inteligência de entender o que entende (que perdeu o amor de Deus) e a vontade de desejar e não poder ter seu desejo realizado.31 Claro que a Arte representa dores físicas: no detalhe do Juízo Final de Giotto (imagem 7), religiosos têm seus órgãos sexuais atacados (um é pendurado por sua língua), mulheres são assadas vivas, serradas, e são obrigadas a engolir líquidos incandescentes. Tudo por toda a Eternidade!
Mais: assim como o afresco O Inferno de Giovanni da Modena (c. 1379-1455) (imagem 4), o filósofo afirma que Maomé, por ter sido “um sarraceno falso e injusto”, e “pela injustiça e luxúria de sua seita terem sido más”, ele está com Lúcifer a receber eternamente o mal que causou:
En Mafumet, e açò mateix d'En Lucifer, fo injust e fals sarraí, e car la sua injustícia e luxúria e secta foren males, cové-li guardó de mal per mal; e car fo gran mal en ço que molts hòmens posa en error, cové guardó sia gran en mal; e car durava lo mal d'aquelles, cové que.l guardó dur longament; e açò mateix de les altres formes; e aquestes colpes guanyades són les rails e.ls mals mèrits.
Maomé, assim como Lúcifer, foi um sarraceno injusto e falso, e como sua injustiça, sua luxúria e sua seita foram más, convém que sua recompensa seja o mal pelo mal. E como foi grande o mal por ter colocado muitos homens no erro, convém que receba um grande mal; e como fez durar o mal daqueles, convém que sua recompensa seja muito longa, e o mesmo das outras formas. Estes golpes recebidos são as raízes e os males, méritos.32
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O Inferno (c. 1410). Detalhe do afresco da Cappella Bolognini, Basílica de São Petrônio (Bolonha) de Giovanni di Pietro Faloppi (ou Falloppi, também conhecido como Giovanni da Modena [c. 1379-1455]).
Llull está de acordo com Tomás de Aquino: Maomé sofre, no Inferno, horrores demoníacos! Como no afresco de Giovanni da Modena (imagem 8), em que o Profeta está amarrado, em uma pedra, logo acima de Lúcifer, com cobras translúcidas nas pernas e no tronco e um diabo alado a estrangulá-lo, a sufocá-lo. “Grande será a pena que terá Maomé, que proporcionou a tantos homens estarem no Inferno, pois na pena de cada um será multiplicada a pena de Maomé”.33
Conclusão
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A Besta do Aqueronte (1475), detalhe do MS 30, folio 17 (Valenciennes, França, têmpera colorida, folha dourada, pintura de tinta e ouro em pergaminho), atribuído a iluminista Simon Marmion (c. 1425-1489). Na iluminura, a alma errante do cavaleiro Thondal (figura nua à esquerda da cena) contempla as punições infernais dos gananciosos. O iluminador imaginou a entrada do Inferno como a boca da besta Aqueronte (nome da mitologia grega que se referia a um rio no Hades). Esta criatura revira seus olhos horríveis e escancara sua boca. Dois diabos empalados em seus dentes afiados mantêm sua boca aberta. No interior, as almas suportam um indescritível tormento em uma fornalha incandescente. As chamas deste poço são representadas com suaves pinceladas de azul, vermelho, laranja, amarelo e verde no lábio superior do animal. Na Idade Média, a alma eram comumente representada como uma figura humana nua para expressar a ideia de que as armadilhas do mundo material desapareciam com a morte corporal. Por fim, quatro demônios se encarregam de não deixar ninguém escapar da boca infernal da besta.34
A imagem dos horrores do Inferno esteve muito presente no imaginário medieval. Na arte românica, para lembrar o Dia do Juízo Final, dia em que as trombetas soariam, retumbantes, para que todos os homens, de todos os tempos, se levantassem de suas tumbas e comparecessem perante o Juiz que exporia publicamente os feitos e a sorte eterna de cada alma, de Adão ao último dos homens. Nada ficará oculto a ninguém, pensavam: todos os pecados, todas as virtudes, todas as consequências posteriores dos atos seriam revelados aos olhos de toda a Humanidade. Também os castigos – ou prêmios – aumentariam conforme essas consequências.35
Os medievais consideravam o Juízo Final como o fim do mundo, o fim da ordem terrestre das coisas, desde a queda de Adão e sua expulsão do Éden, o fim da História, julgamento definitivo e uníssono do gênero humano.36 Então Deus ressuscitaria todos os mortos: suas almas, que já haviam passado pelo juízo particular e, ou gozavam a alegria do Céu ou sofriam as penas do Inferno, seriam novamente reunidas aos seus corpos que, por sua vez, milagrosamente levantar-se-iam do pó onde descansavam graças ao chamado de seu Criador. No Apocalipse, o trono, as trombetas e o livro de que trata a poesia Dies Irae remetem a uma passagem sobre a ressurreição.37
As almas seriam reunidas aos seus corpos para que, ou sua felicidade aumentasse no Céu (pois agora desfrutariam novamente de seus corpos, não mais perecíveis, mas gloriosos), ou seu padecer no Inferno recrudesceria (pois sofreriam na carne os tormentos da fornalha).38
Imaginar os tormentos do Inferno (e o dia do Juízo Final) exerceu sobre as mentes de então um poderoso efeito civilizador.39 Fez parte da construção da civilização ocidental. Uma das mais intensas e emotivas definições do Inferno encontra-se em um sermão de São Bernardo de Claraval (1090-1153). São palavras impactantes e que sintetizam o sentimento de um medieval a respeito do tema que escolhemos apresentar. Por isso, com elas nos despedimos:
Qui in inferno sunt, redimi non possunt, quia in inferno nulla est redemptio (...) O regio dura et gravis, regio extimescenda, regio fugienda! Terra oblivionis, terra afflictionis, terra miseriarum, terra tenebrarum, in qua nullus ordo, sed sempiternus horror inhabitat! Locus letifer, in quo ignis ardens, ubi frigus rigens, vermis immortalis, foetor intolerabilis, mallei percutientes, tenebrae palpabiles, confusio peccatorum, innodatio vinculorum, horribiles daemonum facies! Totus tremo atque horreo ad memoriam istius regionis, et concussa sunt omnia ossa mea. Quomodo cecidisti, Lucifer, qui mane oriebaris? Omnis lapis pretiosus operimentum tuum; modo subter te sternitur tinea et operimentum tuum vermis. O Deus, quanta distantia inter oprimentum pretiosi lapidis et opertorium vermis, inter delicias paradisi et tineam inferni! Scio quia paratus est ignis ille diabolo et angelis eius, ubi sine fine finientur, sine morte morientur, torquebuntur sine cessatione. Vivens igitur in infernum descende; percurre mentalibus oculis tormentorum officinas, fuge scelera et vitia, pro quibus scelerati et vitiosi perientur. Habe odio iniquitatem et dilige legem Domini, et in tam formidolosis nundinis fac sarcinam tuam odium peccati.
Os que estão no Inferno não podem mais serem redimidos, porque no Inferno não há redenção (...) Trata-se de uma região dura e pesada, região terrível, região repelente! Terra do esquecimento40, terra da aflição, terra miserável, terra tenebrosa, onde não há ordem, somente o eterno horror inabitável41! Lugar da morte, do fogo ardente, do frio rigoroso, dos vermes imortais42, do fedor intolerável, dos martelos percucientes43, das trevas palpáveis44, da confusão dos pecados, do barulho das cadeias, das horríveis faces dos demônios! Tremo dos pés à cabeça e meus ossos se desconjuntam ao pensar nesse horrendo lugar! Como caístes do Céu, Lúcifer, filho da aurora? Estavas revestido de pedras preciosas, e agora, debaixo de teu leito e em teu leito, vermes. Oh, Senhor, quanta distância entre um manto de pedras preciosas e outro de vermes, entre as delícias do Paraíso e as trevas infernais! Bem sei que esse fogo está reservado ao diabo, a seus anjos e a homens como eles! Aquilo é como consumir-se eternamente, morte interminável, tormento infindável! Desce agora, portanto, em vida, ao Inferno, percorre com os olhos do espírito essas oficinas de tormento e foge do crime e do vício que causaram a morte aos malvados e pecadores! Odeia a iniquidade e ama a Lei do Senhor, e nesses formidáveis mercados compra o ódio do pecado (os grifos são nossos).
BERNARDO DE CLARAVAL. Sermão 42, 5 e 6.45
Dá ou não dá medo?
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Fontes
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Bibliografia
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Notas
- 1. Citado em HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naif, 2010, p. 357, quem magistralmente relaciona a imagem infernal de Memling com o texto de Dionísio.
- 2. RAMON LLULL. Doutrina para crianças (c. 1274-1276) (trad.: Ricardo da Costa e Grupo de Pesquisas Medievais da UFES III). Alicante: IVITRA, 2010, p. 88
- 3. CORPUS CHRISTIANORUM. Continuatio Mediaeualis 215. RAIMVNDI LVLLI OPERA LATINA 7-9 (edidit Jaume MEDINA). Turnhoult, Brepols, 2009.
- 4. COSTA, Ricardo da. “A Morte e as Representações do Além na Doutrina para crianças (c. 1275) de Ramon Llull”. In: SANTOS, Franklin Santana (org.). A Arte de Morrer - Visões Plurais - Volume 3. Bragança Paulista, SP: Editora Comenius, 2010, p. 118-134.
- 5. Maravilhosa explicação teológica do Prof. Armando Alexandre dos Santos, a quem agradecemos.
Pouquíssimas são as almas que vão direto para o Céu após a morte. Para nele entrar, a santidade de Deus exige que a alma esteja completamente purificada, sem mancha de pecado venial ou falta leve. A grande maioria deve passar por um lugar de purificação – o Purgatório – onde a maior parte será expurgada.
Em O nascimento do Purgatório, Jacques Le Goff (1924-2014) datou o início dessa crença no século XIII, relacionando-a às transformações socioeconômicas e culturais pelas quais passava o Ocidente. Afirmou que a doutrina do Purgatório teve causas meramente imanentes – como se o clero da Igreja não acreditasse em sua existência, nem tivesse razões transcendentais para afirmá-lo (inclusive anteriores a esse período). Le Goff datou a existência do Purgatório naquele período, e não antes, porque foi nele em que a palavra surgiu na documentação, como nome próprio e lugar no Além. Contudo, o próprio medievalista citou uma extensa base bíblica e citações patrísticas (a partir do século II) que fazem referência a um fogo purificador, fogo purgatório, etc., exigência semântica hipercrítica para datar a crença do Purgatório a partir apenas desse século. Ver LE GOFF, Jacques. O nascimento do Purgatório. Lisboa: Estampa, 1993. Agradecemos também à Profa. Deborah Azevedo da Silva por suas observações a respeito do tema.
- 6. As opiniões de vários teólogos modernistas, inclusive do papa João Paulo II (1920-2005), estão em desacordo com a Bíblia e com toda a tradição teológica católica (e, portanto, também do pensamento medieval a respeito). Para uma breve exposição do problema, ver SILVEIRA, Sidney. “Deus não castiga?”. In: Contra Impugnantes, 02 de julho de 2011.
- 7. Em contrapartida, “...a perda contemporânea do sentimento religioso fez da morte uma provação aterrorizante, um trampolim para as trevas e o incognoscível”. DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000. Na pista de nossos medos. São Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 122.
- 8. “Uma coisa é adorar uma pintura, outra aprender por uma história pintada o que se deve adorar. Porque o que a escrita proporciona aos que a leem, proporciona-o a pintura aos incultos que a veem, porque os ignorantes veem nela o que devem fazer, nela leem os que são néscios nas letras, de modo que sobretudo aos gentios a pintura lhes serve de lição” (Aliud est enim picturam adorare, aliud per picturae historiam quid sit adorandum addiscere. Nam quod legentibus scriptura, hoc idiotis praestat pictura cernentibus, quia in ipsa ignorantes uident quod sequi debeant, in ipsa legunt qui litteras nesciunt, unde praecipue gentibus pro lectione pictura est) (trad.: Carlos Nougué), GREGORIUS MAGNUM. “Epistola ad Serenus" (XI, 10). In: Registrum Epistularum. Turnhout: Brepols, 1982 (CCSL 140A).
- 9. Nesse aspecto, Huizinga é taxativo: “Como na literatura budista, quando alguém se depara com os feitos de um bodhisattva e se escuta o aplauso dos seres divinos sob a forma de chuva de flores, luzes e um leve estremecer da terra, da mesma forma Dionísio [o Cartuxo], com ânimo mais melancólico, ouve como todos os abençoados e justos, as esferas celestes, todos os elementos, e até mesmo os seres ignorantes e os objetos desalmados, clamam pela condenação do injusto”, HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média, op. cit., p. 356-357.
- 10. WILLIAMS, John. Early Spanish Manuscript Illumination. New York: George Braziller, 1977, p. 119. Para um interessante – e instigante – ponto de vista sobre esse importante autor, ver ECO, Umberto. “Apontamentos sobre Beato”. In: Da Árvore ao Labirinto. Rio de Janeiro: Record, 2013, p. 239-271. Uma excelente análise dessa iluminura é feita por M. GÓMEZ, Nora. “Las miniaturas hispanas de temática infernal en los siglos X y XI”. In: GUIANCE, Ariel (ed.). Entre el cielo y la tierra. Escatología y sociedad en el mundo medieval. Buenos Aires: Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – Instituto Multidisciplinario de Historia y Ciencias Humanas, 2009, p. 165-206 (especialmente as páginas 202-206).
- 11. Durante a maior parte da Idade Média, ainda era possível algum grau de discussão sobre o destino dos justos após a morte – por exemplo, se eles gozariam da imediata visão beatífica de Deus ou se teriam de aguardar a ressurreição dos corpos, no fim do mundo, para desfrutar de Sua presença. À medida que o período terminava, porém, essas discussões sobre a condição dos eleitos no Além cederam lugar a definições dogmáticas da Igreja que puseram termo às indagações sobre o assunto. O Segundo Concílio de Lyon (1274), ratificado por Bento XII, em 1336, e pelo Concílio de Florença (1438-1445), definiram, sob pena de excomunhão para quem o negasse, que as almas dos justos entram em posse do céu antes da ressurreição dos corpos. Cf. Biblia Comentada Straubinger. Tlalnepantla: Editora de México, 1969, Eclesiastes IX, 5, nota 5. Os medievais nunca duvidaram, porém, do castigo imediato que os maus, os pecadores e os injustos sofrem imediatamente no pós-vida – no inferno, justamente o tema deste trabalho. E era, deveras, isto que os enchia de terror.
- 12. Santo Tomás de Aquino (1225-1274) o explica: “Se é evidente, pelo que se acabou de dizer, que tanto a felicidade quanto a miséria futuras realizam-se principalmente na alma, secundariamente, porém, e por certa derivação, no corpo, a felicidade ou a miséria da alma não dependem da felicidade ou da miséria do corpo, mas mais dela mesma. Como, após a morte e antes da ressurreição dos corpos, umas almas apresentam-se com a merecida bem-aventurança, outras, com a merecida miséria, isso evidencia que, já antes da reassunção dos corpos, algumas almas gozarão da felicidade, conforme atesta a Segunda Carta aos Coríntios: ‘Todos nós sabemos que, quando for destruída essa tenda em que vivemos na terra, teremos no céu uma casa feita por Deus, uma habitação eterna, não feita por mãos humanas’; e: ‘Cheios de confiança desejamos sair deste corpo para habitar com o Senhor’ (II Cor 5, 18). Outras almas, porém, viverão na miséria, conforme se lê no Evangelho de São Lucas: ‘O rico morreu, e foi sepultado. Achando-se em tormentos no inferno...’ (Lc 16, 22, 23)”. SANTO TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia (trad. e notas: D. Odilão Moura, OSB). Rio de Janeiro: Presença, 1977, cap. CLXXVIII (A pena dos condenados existirá já antes da ressurreição).
- 13. Segundo o entendimento medieval, antes da morte e ressurreição de Jesus Cristo, o Céu estava fechado à entrada dos justos e dos santos. Portanto, aqueles que morreram na amizade de Deus antes da redenção da humanidade realizada pelo Salvador, estavam retidos em uma parte dos Infernos chamada aqui pelo Evangelho de Seio de Abraão – isto é, o local onde os justos e santos que morreram antes de Cristo aguardavam a chegada do Redentor.
O próprio Ramon Llull trata deste local na Doutrina para crianças (XCIX. Do Inferno, 1): “O Inferno está no meio de um lugar que fica dentro do coração da Terra, e tal lugar é trancado e fechado, e ali existe pena por todos os tempos. Essa pena acontece em quatro lugares: um é o Inferno, onde estão os danados que nunca sairão; outro é o Inferno que é chamado Purgatório, no qual o homem faz penitência porque não a cumpriu neste mundo; o terceiro Inferno é o lugar onde entraram os profetas antes que o Filho de Deus fosse encarnado, e esse Inferno é chamado Abraão; o quarto Inferno é aquele onde entraram as crianças que morreram e não foram batizadas”.
A nota explicativa de nossa tradução (n. 102) sobre o Abraão nos fornece mais detalhes: “O nome que Llull dá ao terceiro Inferno (Abraão), e que tem a sua origem no Evangelho segundo Lucas (XVI, 22-23), traz a seguinte questão, comum para os pensadores medievais: o que acontece com os profetas que viveram antes de Cristo, se Ele é a única salvação e redenção? Estariam perdidos e danados só por terem vivido antes da vinda redentora de Cristo? Não. Assim, Llull os coloca em um espaço infernal para que esperem a chegada de Cristo, e dá a este inferno o nome de Abraão, seguindo a tradição judaico-cristã. Após a vinda de Cristo e após Ele ter redimido a Humanidade, os profetas podem então ir para o Céu. Hoje não pensamos assim (do ponto de vista da concepção teológica moderna). Os medievais tinham aqui um problema: como coordenar a eternidade com o tempo. Cristo redime os homens no tempo; se os homens que viveram antes de Cristo estão redimidos antes da Encarnação de Cristo, para que Ele teve que Se encarnar no tempo? A teologia atual diria que Cristo, embora Se encarne para nós em um momento preciso de nossa História, foi, é e sempre será o mesmo Cristo, isto é, Deus encarnado, desde a Eternidade até a Eternidade. Caso contrário, haveria mutabilidade em Cristo, e conseqüentemente em Deus, e Deus seria um ser diferente antes do ano zero e depois do ano zero, etc.”.
- 14. Não é desproposital a alteração da tradução da Bíblia de Jerusalém do termo Inferno – ou Abismo – por mansão dos mortos. Uma mansão não é, em tese, um lugar desagradável. Ainda que seja dos mortos, continua uma mansão – lugar aprazível, amplo, com um certo requinte. A palavra não enfatiza o sofrimento, próprio da definição do Inferno (todos os males e nenhum bem), nem a profundeza escura de Abismo.
A Igreja sempre chamou os locais que não o Céu no Além de “Infernos” – nestes inclusos: a) o Purgatório; b) o Limbo; e c) o Inferno dos demônios, o Inferno propriamente dito. Após o Concílio Vaticano II, o clero “progressista” popularizou o termo mansão dos mortos para se referir a esses “infernos”: tanto ao Purgatório quanto ao Limbo, e até mesmo ao Inferno de fato – tal como na tradução da Bíblia de Jerusalém para a passagem citada (Lc 16, 19-25). Afinal, a expressão “infernos” ou “inferno” assusta, ofende a sensibilidade contemporânea e não combina com a imagem de um Deus que é apenas “bondade”.
- 15. SANTO TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia, op. cit., cap. CLXXIV (Em que consiste a miséria do homem quanto à pena de dano).
- 16. BELTRAMI, André. O Inferno existe. Provas e exemplos. Niterói: [s.n.], 1945 (cf. Prefácio).
- 17. BELTRAMI, André, 1945 (cf. cap. I).
- 18. O Doutor angélico o explica: “Conhecerão, porém, aqueles que viveram virtuosamente, que conseguiram o que desejaram como ótimo. Os maus afligir-se-ão devido aos pecados cometidos, não porque os pecados os aborreçam, pois se lhes fosse dada oportunidade, ainda os cometeriam e os prefeririam a Deus: afligir-se-ão porque não poderão possuir aquilo que escolheram, e porque poderiam ter aquilo que rejeitaram. Assim as suas vontades permanecerão perpetuamente obstinadas no mal, e ainda afligir-se-ão muitíssimo pela culpa adquirida e pela glória perdida. Chama-se esse sofrimento remorso de consciência, e, na Escritura, ele é chamado de verme, conforme se lê em Isaías: “Os vermes não morrerão para eles” (Is 66, 24). SANTO TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia, op. cit., cap. CLXXV (Os pecados mortais não serão perdoados após esta vida; sê-lo-ão, porém, os veniais).
- 19. Novamente Santo Tomás: “Para que não se pense ser absurdo sofrer a alma separada do corpo ação do fogo corpóreo, deve-se considerar que não é contra a natureza da substância espiritual ser retida pelo corpo [...] E porque aquele fogo, não por sua natureza, mas por virtude divina, tem capacidade de reter uma substância espiritual, muitos convenientemente afirmaram que ele age sobre a alma como instrumento da justiça divina vindicativa, não agindo sobre a substância espiritual como age sobre os outros corpos, aquecendo, secando ou dissolvendo, mas prendendo, como foi dito”. SANTO TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia, op. cit., cap. CLXXX (Pode a alma sofrer a ação do fogo corpóreo?).
- 20. Já em A República de Platão, os justos irão para a direita e os injustos para a esquerda: “No espaço entre elas, estavam sentados juízes que, depois de pronunciarem a sua sentença, mandavam os justos avançar para o caminho à direita, que subia para o céu, depois de lhes terem atado à frente a nota de seu julgamento; ao passo que, aos injustos, prescreviam que tomassem à esquerda, e para baixo, levando também atrás a nota de tudo quanto haviam feito”. PLATÃO. A República (introd., trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 488, Livro X, 614c).
- 21. Em Jerusalém, a geena era um vale onde hebreus apóstatas sacrificavam seus filhos ao ídolo Moloc, fazendo-os antes passar pelo fogo. O rei Josias (c. 649-609 a. C.), a fim de acabar com tal prática, mandou aterrar o vale, transformando-o em depositório de cadáveres, lixo, detritos, e cujo fogo estava sempre aceso. Cristo, para tornar a imagem do Inferno mais sensível, tomou a imagem desse vale – que no Além é o local da segunda morte, a verdadeira morte, morte da alma.
- 22. A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Edições Paulinas, 1991, p. 1857.
- 23. “...um só é o Vosso Mestre e todos vós sois irmãos” (Mt 23, 8); “O próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus. E se somos filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois sofremos com ele para também com ele sermos glorificados (Rm 8, 16-17)”.
- 24. A natureza humana é a mesma para um imperador e um escravo, para um santo e um pecador, para um homem e uma mulher, etc. A natureza humana é a mesma para todos. Mas Deus quis que ela comportasse múltiplos elementos acidentais de diferenciação. É a partir desses elementos acidentais – e note que acidental não significa pouco importante – que se faz a maravilhosa harmonia do conjunto. Agradeço a explicação desse importante detalhe conceitual por parte do Prof. Armando Alexandre dos Santos (originalmente, escrevemos “Os medievais não eram igualitários. Para eles, todos, sem exceção, eram desiguais por natureza....”, e o amigo nos corrigiu).
- 25. “Por que um dia prevalece sobre outro, enquanto a luz, todo o ano, vem do sol? No pensamento do Senhor é que foram separados, ele diversificou as estações e as festas. Elevou e santificou alguns dias, colocou outros no número dos dias comuns. Todos os homens também vêm do solo, da terra é que Adão foi formado. Em sua grande sabedoria o Senhor os distinguiu, diversificou os seus caminhos. Abençoou alguns, consagrou-os, colocou-os junto de si; amaldiçoou outros, humilhou-os e derrubou-os de seus lugares. Como a argila não mão do oleiro, que a amolda a seu bel-prazer, assim são os homens na mão de seu Criador, que lhes retribui segundo o seu julgamento” (Ecli, 33,7-12).
- 26. A Bíblia contém inúmeros casos de bênçãos e maldições que passaram de geração a geração através da História. Por exemplo, “Eu te abençoarei e multiplicarei a tua estirpe como as estrelas do céu e como a areia que há sobre a praia do mar; a tua descendência possuirá as portas de seus inimigos. E na tua descendência serão benditas todas as nações da terra, porque obedeceste à minha voz” (Gn 22,17-18); “Eu sou o Senhor teu Deus forte e zeloso, que vinga a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e quarta geração daqueles que me odeiam, e que usa de misericórdia até mil gerações com aqueles que me amam e guardam os meus preceitos” (Ex 20,5-6); “Eis que eu ponho hoje diante dos vossos olhos a bênção e a maldição; a bênção, se obedecerdes aos mandamentos do Senhor vosso Deus, que eu hoje vos prescrevo; a maldição, se não obedecerdes aos mandamentos do Senhor vosso Deus, mas vos apartardes do caminho que eu hoje vos mostro, e fordes após os deuses estranhos, que não conheceis” (Deut 11, 26-28).
- 27. “Mas Iahweh disse a Samuel: ‘Não te impressione a sua aparência nem a sua elevada estatura: eu o rejeitei. Deus vê não como o homem vê, porque o homem toma em consideração a aparência, mas Iahweh olha o coração’”, 1Sm 16, 7.
- 28. DUBY, Georges. “Arte e Sociedade”. In: DUBY, Georges e LACLOTTE, Michel (coord.). História Artística da Europa. A Idade Média. Tomo I. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997, p. 108 e 113.
- 29. RAMON LLULL. Obres essencials II. Barcelona: Editorial Selecta, 1957, p. 226.
- 30. A ideia de que o temor de Deus é não somente algo salutar, mas o princípio da Sabedoria, é recorrente em todo o Antigo Testamento (pelo menos sete vezes: Salmos 90, 10; Provérbios 1, 7; 9, 10; 15, 33; Eclesiástico 1, 16; 1, 25 e 21, 13), Armando Alexandre dos Santos.
- 31. RAIMUNDO LÚLIO. Félix, ou O Livro das Maravilhas. Parte II. O homem - o Paraíso - o Inferno (apres., trad. e notas de Ricardo da Costa). São Paulo: Editora Escala, 2009, p. 337.
- 32. RAMON LLULL. “Arbre de ciència”. In: Obres Essencials I. Barcelona: Editorial Selecta, 1957, p. 730.
- 33. RAIMUNDO LÚLIO. Félix, ou O Livro das Maravilhas. Parte II. O homem - o Paraíso - o Inferno, op. cit., p. 341. Para as similitudes descritivas do sofrimento de Maomé no Inferno entre Santo Tomás e Llull, ver COSTA, Ricardo da. “Maomé foi um enganador que fez um livro chamado Alcorão”: a imagem do Profeta na filosofia de Ramon Llull (1232-1316). In: Revista NOTANDUM, n. 27, Ano XIV, set-dez 2011, Editora Mandruvá - Univ. do Porto, p. 19-35.
- 34. Ver The Beast Acheron, The J. Paul Getty Museum.
- 35. O poema Dies Irae é uma das mais famosas melodias do canto gregoriano, belo fruto artístico desta reflexão sobre o Juízo Final. Seu autor e período de elaboração são incertos; talvez o século XIII, ou antes. No Missal Romano de São Pio V, ele é parte da Missa de Finados e do Ofício dos Mortos. MISSALE ROMANUM. Ex Decreto SS. Concilii Tridentini Restitutum. Auctoritate S. Pii Pp. V promulgatum b. Joannis Pp. XXIII Cura Recognitum. Roma, 1962. Cf. a Liturgia do dia 02 de Novembro – Missa de Finados.
- 36. Já Marc Bloch (1886-1944) notara que o Cristianismo é uma religião de historiador e que, por isso, tem noção de uma consumação futura da história: “Outros sistemas religiosos fundaram suas crenças e seus ritos sobre uma mitologia praticamente exterior ao tempo humano; como Livros sagrados, os cristãos têm livros de história, e suas liturgias comemoram, com os episódios da vida terrestre de um Deus, os faustos da Igreja e dos santos. Histórico, o cristianismo o é ainda de outra maneira, talvez mais profunda: colocado entre a Queda e o Juízo, o destino da humanidade afigura-se, a seus olhos, uma longa aventura, da qual cada vida individual, cada ‘peregrinação’ particular, apresenta, por sua vez, o reflexo; é nessa duração, portanto dentro da história, que se desenrola, eixo central de toda meditação cristã, o grande drama do Pecado e da Redenção. Nossa arte, nossos monumentos literários estão carregados dos ecos do passado, nossos homens de ação trazem incessantemente na boca suas lições, reais ou supostas”. BLOCH, Marc. Apologia da História ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 42.
- 37. “Vi depois um grande trono branco e aquele que nele se assenta [...] Vi então os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono, e abriram-se livros. Também foi aberto outro livro, o da vida. Os mortos foram então julgados conforme sua conduta, a partir do que estava escrito nos livros. [...] Esta é a segunda morte: o lago de fogo. E quem não se achava escrito no livro da vida, foi também lançado no lago de fogo”, Ap 20, 11-12; 14-15.
- 38. Com este fim, os corpos dos condenados estariam íntegros, mas sem a glória dos beatificados: nem sutis, nem impassíveis, mas pesados e extremamente passíveis, ainda que incorruptíveis. Tudo isto lhes agravará os sofrimentos: seus corpos não serão claros, mas obscuros, pois revelarão as trevas da alma: “Os seus rostos serão de faces queimadas” (Is 13, 8). Ver também SANTO TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia, op. cit., capítulo CLXXVI (Os corpos dos condenados serão passíveis e sem dotes, mas íntegros).
- 39. Por exemplo, quando, na França carolíngia, os clérigos começaram a regular o casamento, uma das preocupações era o combate ao rapto de mulheres que os nobres praticavam. “Viúvas, monjas, jovens (prometidas ou não), esposas, aparecem como outras tantas presas perseguidas por matilhas de homens jovens” – DUBY, Georges. “Moral de los sacerdotes, moral de los guerreros”. In: Obras selectas de Georges Duby (presentación y compilación de Beatriz Rojas). México: Fondo de Cultura Económica, 1999, p. 304.
- 40. SL 88,12.
- 41. Jó 10, 22.
- 42. Mc 9, 44.
- 43. Prov. 19, 29.
- 44. Ex 10, 21.
- 45. OBRAS COMPLETAS DE SAN BERNARDO DE CLARAVAL VI. Sermones varios. Madrid: BAC, MCMLXXXVIII, p. 320-323.
Короли, рыцари, монахи, крестьяне - все в средние века . Это была также, которая вызвала горькие религиозные споры и могла заставить вас сходить с ума.
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Ali haverá pranto e ranger de dentes
O Inferno na Arte e na Filosofia da Idade Média
Conferência de encerramento do I Encontro Internacional e
II Encontro Nacional de História Antiga e Medieval de Imperatriz-Ma (UEMA):
Mito, Religião e Magia, no dia 20 de novembro de 2014.
In: MOURA, Fabricio Nascimento de (org.).
O poder imaginário: diálogos com a Antiguidade,
medievo e outras temporalidades.
Imperatriz: Ethos, 2016, p. 274-303
(ISBN: 978-85-66425-09-3).
Resumo: Análise iconográfica de afrescos medievais sobre o Inferno com o confronto dos textos bíblicos, filósofos e teólogos do século XIII. Por exemplo, Ramon Llull, em suas primeiras obras (Llibre de contemplació, Doctrina pueril) e Santo Tomás de Aquino (Compendium Theologiae).
Palavras-chave: Inferno – Arte Medieval – Ramon Llull – Dante.
Abstract: Iconographic analysis of medieval frescoes about Hell with the confrontation of biblical texts, philosophers and theologians of the thirteenth century. For example, Ramon Llull, in his early works (Llibre de contemplació, Doctrina pueril) and Saint Thomas Aquinas (Compendium Theologiae).
Keywords: Hell – Medieval Art – Ramon Llull – Saint Thomas Aquinas.
Conferência de encerramento do I Encontro Internacional e
II Encontro Nacional de História Antiga e Medieval de Imperatriz-Ma (UEMA):
Mito, Religião e Magia, no dia 20 de novembro de 2014.
In: MOURA, Fabricio Nascimento de (org.).
O poder imaginário: diálogos com a Antiguidade,
medievo e outras temporalidades.
Imperatriz: Ethos, 2016, p. 274-303
(ISBN: 978-85-66425-09-3).
Resumo: Análise iconográfica de afrescos medievais sobre o Inferno com o confronto dos textos bíblicos, filósofos e teólogos do século XIII. Por exemplo, Ramon Llull, em suas primeiras obras (Llibre de contemplació, Doctrina pueril) e Santo Tomás de Aquino (Compendium Theologiae).
Palavras-chave: Inferno – Arte Medieval – Ramon Llull – Dante.
Abstract: Iconographic analysis of medieval frescoes about Hell with the confrontation of biblical texts, philosophers and theologians of the thirteenth century. For example, Ramon Llull, in his early works (Llibre de contemplació, Doctrina pueril) and Saint Thomas Aquinas (Compendium Theologiae).
Keywords: Hell – Medieval Art – Ramon Llull – Saint Thomas Aquinas.
Imagem 1
O Juízo Final (Das Jüngste Gericht, c. 1467-1472), de Hans Memling (c. 1430-1494). Tríptico, óleo sobre madeira, 221 x 161 (painel central) e 223,5 x 72,5 (painéis laterais), Museu Nacional de Gdansk, Polônia. À esquerda de Deus (direita do espectador), o Inferno.
Imagem 2
Detalhe do painel da lateral direita de O Juízo Final (Das Jüngste Gericht, c. 1467-1472), de Hans Memling (c. 1430-1494). Tríptico, óleo sobre madeira, 221 x 161 (painel central) e 223,5 x 72,5 (painéis laterais), Museu Nacional de Gdansk, Polônia. Em destaque na cena, religiosos (tonsurados) que em vida foram fornicadores: estão com suas amantes sendo pisoteados (e elas estranguladas) por terríveis e monstruosos demônios, entre labaredas incandescentes, nus. Memling imagina a cena e a representa artisticamente com tamanha força que pode-se imaginar a intensidade do calor infernal. Seu Inferno é condizente com a imagem que os religiosos de então tinham, como, por exemplo, Dionísio, o Cartuxo (1402-1471), que apresenta o Inferno exclusivamente em termos de pavor e de miséria: “Tenhamos sempre perante nosso espírito o forno mais quente e mais em brasa, e dentro dele um homem nu, que nunca mais será libertado de tal tortura (...) Quão miserável ele se nos apresenta!”, De quatuor hominum novissimis (Opera, t. XLI, p. 545).1
I. Temor, medo!
Fill, per ço hages paor de l'infernal foc qui tots temps dura, ve a la fornal on fan lo vidre i al forn on coen lo pa, i considera per quant estaries una hora en aquell foc. On, si per tot lo món, qui el te donava, tu no estaries en aquell foc una hora, quant més deus tembre que per un delit temporal que lleugerament passa esties en lo foc infernal, qui tots temps dura!
Filho, para que tenhas temor do fogo infernal que dura eternamente, vai à fornalha onde fazem o vidro e ao forno onde cozinham o pão, e imagina ficar uma hora naquele fogo. Logo, se mesmo que eu te desse todo o mundo tu não estarias por um momento naquele fogo, mais deves temer que, por um deleite temporal que rapidamente passa, estejas no fogo infernal que dura por toda a eternidade!
RAMON LLULL. Doctrina pueril, XCIX. “Do Inferno”, 7.2
O filósofo catalão Ramon Llull (1232-1316) dedicou um capítulo de sua obra Doutrina para crianças (c. 1274-1276) ao Inferno.3 O livro, escrito para seu filho Domingos, é uma espécie de compêndio pedagógico infantil, manual para a vida, e o temor do Inferno a baliza na qual os medievais construíam seus tratados morais.4 Nesse aspecto, eles cumpriam à risca a admoestação de Eclesiástico 7, 40 (“Em tudo o que fazes, lembra-te de teu fim e jamais pecarás”). Pensavam em seus Novíssimos – as quatro últimas coisas que, no pensamento teológico-católico-medieval, acontecem aos homens: a Morte, o Juízo, o Inferno e o Paraíso. As duas primeiras, certas e universais; as duas últimas, para eles, excludentes, pois todos morrem e são julgados, todos vão, em definitivo, ou para o Inferno ou para o Paraíso (os que vão para o Inferno não vão para o Paraíso e, consequentemente, os que vão para o Paraíso não vão para o Inferno).5 Sem esse incisivo pano de fundo imagético, perspectiva transcendental, não é possível compreender a mentalidade medieval.6
No entanto – e para muitos de nós, hoje, enigmático – como os medievais não duvidavam da existência de um outro mundo, celebravam a cerimônia de passagem, a morte, com convicção, com a esperança de salvação (um dos poucos a compreender a amplitude dessa concepção existencial foi o historiador Georges Duby [1919-1996]).7 Seja como for como imaginemos essas certezas e dúvidas, a visão do Inferno esteve presente em praticamente todas as manifestações imagéticas – para o papa Gregório Magno (c. 540-604), Bíblia dos iletrados8 – durante toda a Idade Média a recordar aos incautos o que estava reservado a eles após a morte corporal (e para gáudio dos justos que procuravam viver uma vida correta neste mundo9).
Imagem 3
O Inferno. Frontispício do Beato de Santo Domingo de Silos (c. 1091-1109), folio 2. Enquanto Barrabás, na entrada do tetralóbulo infernal (à esquerda), trapaceia a pesagem das almas de São Miguel (localizado do lado de fora do tetralóbulo, na extrema esquerda da iluminura), no centro, em amarelo (cor da falsidade) está a representação de um dos sete pecados capitais, a avareza (a φιλαργυρία, philarguria, o amor ao ouro, ao dinheiro): mesmo no núcleo do Inferno, o ganancioso ainda tenta segurar os sacos de moedas. Acima, dele, amantes se abraçam na cama, embaixo das cobertas: seus antigos prazeres carnais são relembrados enquanto sofrem com as provocações de um demônio (Atimos) com uma enorme genitália verde.10
II. Temores teológicos: “Apartai-vos de mim, malditos!”
O Filho do Homem enviará seus anjos e eles apanharão do seu Reino todos os escândalos e os que praticam a iniquidade e os lançarão na fornalha ardente. Ali haverá choro e ranger de dentes. Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai. O que tem ouvidos, ouça!
Mt 13, 41-43.
Cristo anunciou que julgará os homens em dois momentos.11 Primeiro, individualmente, logo após a morte de cada um. Será quando o Juiz implacável selará o destino sempiterno de toda alma em Sua presença.12 Os que tiveram como única preocupação o desfrute dos bens terrestres, sofrerão eternamente as penas do Inferno; os que souberam suportar com resignação e esperança as desventuras desta vida, gozarão para sempre da bem-aventurança do Céu:
Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e cada dia se banqueteava com requinte. Um pobre, chamado Lázaro, jazia à sua porta, coberto de úlceras. Desejava saciar-se do que caía da mesa do rico... E até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Aconteceu que o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão.13 Morreu também o rico e foi sepultado.
Na mansão dos mortos14, em meio a tormentos, levantou os olhos e viu ao longe Abraão e Lázaro em seu seio.
Então exclamou: ‘Pai Abraão, tem piedade de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo para me refrescar a língua, pois estou torturado nesta chama’. Abraão respondeu: ‘Filho, lembra-te de que recebestes teus bens durante tua vida, e Lázaro por sua vez os males; agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado’.
Lc 16, 19-25.
No Além cristão-medieval há uma inversão da ordem terrestre: Lázaro, o miserável, que pouco ou nada tinha em sua vida carnal e muito sofria com seus tormentos seculares, foi regalado por Deus (representado por Abraão) com a maior das recompensas e tesouros: desfrutar de Sua presença por toda a Eternidade. Por outro lado, prestemos atenção à sorte do homem rico: ele, que se satisfizera em vida com a fruição de seus bens materiais (em especial a comida, pois era glutão – um dos sete pecados capitais), foi condenado ao Inferno e a padecer tormentos – e o pior não era o fogo, mas a pena do dano (a privação eterna de Deus).15 Passará o resto da eternidade a sofrer “aquele terrível sempre e aquele terrível nunca”16 que Cristo anunciara de forma tão incisiva:
E se teu olho te escandalizar, arranca-o: melhor é entrares com um só olho no Reino de Deus do que, tendo os dois olhos, seres atirado na geena, onde ‘o verme não morre e onde o fogo não se extingue’ (os negritos são nossos).
Mc 19, 47-49.
Cristo se vale de diferentes nomes: fogo inextinguível, trevas exteriores, onde haverá pranto e ranger de dentes, lugar de tormentos, fornalha de fogo, geena de fogo.17 O réprobo, condenado a padecer perpetuamente nele, sofre, sem qualquer esperança do consolo que jamais virá... O “verme” é o mesmo do profeta Isaías: “Porque o seu verme não morrerá e o seu fogo não se apagará” (Is 66, 24). Santo Tomás de Aquino (1225-1274) explicou que esse verme a que se refere tanto o profeta quanto o Evangelho é a consciência acusativa do danado por perder a graça que tão facilmente poderia tê-lo salvo.18
Ele sentirá o remorso da consciência, ruído inextinguível de respiração do moribundo, estertor suscitado pelo inefável bem que escapou de suas mãos e que, para sempre, há de atormentá-lo. O próprio condenado, vez após vez e sem fim, acusar-se-á por isso. A alma, mesmo espiritual, sofrerá a ação do fogo material, corpóreo, do Inferno, cuja função é a de prendê-la. Assim como fora retida em sua vida carnal pelo corpo, de forma análoga, será grande a humilhação ao ver-se apresada por algo que lhe é naturalmente inferior.19
Segundo julgamento: além do juízo particular, exercido logo após a morte de cada homem, Cristo presidirá outro, geral. Trata-se do último julgamento, o Juízo Final no Fim do Mundo. Quando o Filho do Homem vier em Sua glória, com todos os Seus anjos, sentará em Seu trono. As nações serão reunidas e os cabritos (pecadores) serão separados das ovelhas (inocentes); os primeiros à esquerda, os segundos à direita.20 Salvará Ele então as ovelhas, os justos, e condenará os pecadores:
Em seguida, dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer. Tive sede e não me destes de beber. Fui forasteiro e não me recolhestes. Estive nu e não me vestistes, doente e preso, e não me visitastes’.
Mt, 25, 41-43.
São passagens bíblicas fundamentais, claras, diretas e, sobretudo, fundadoras de todas as imagens medievais sobre o Juízo Final. O Cristo é incisivo: não se deve temer o que mata o corpo, mas o que destrói a alma e a envia para a geena (Mt 10, 28).21 O Cristo é taxativo: quem O renegar, será renegado diante do Pai que está nos Céus. O Cristo é radical: não veio para trazer a paz, mas a espada, pois contrapõe o homem a seu pai, à sua filha, à sua mãe, à sua nora e à sua sogra. Portanto, quem amar o pai, a mãe, o filho ou a filha mais do que a Ele, não será digno d‘Ele (Mt 10, 34-38).22
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O Inferno (c. 1410). Detalhe do afresco da Cappella Bolognini, Basílica de São Petrônio (Bolonha) de Giovanni di Pietro Faloppi (ou Falloppi, também conhecido como Giovanni da Modena [c. 1379-1455]).
A contundência bíblica do discurso de Jesus Cristo propiciou aos religiosos, à Igreja, patrocinadora da Cultura, das Artes, ensinar aos artistas, técnicos empregados para representar em imagens impactantes o mundo do Além, em iluminuras, em esculturas, em vitrais, em afrescos, aquilo que estava conforme o texto sagrado e que não pudesse ser considerado herético. Por isso, por todos na Christianitas serem irmãos em Cristo23, nenhum extrato social, nenhuma ordem, ninguém estava livre do julgamento final. Mais: na ótica medieval (sempre ela a balizar nossas interpretações), o fato de um condenado provir de um extrato social elevado era um agravante e, por isso, acarretava uma punição mais severa. Isso, por dedução do Livro da Sabedoria:
Ao pequeno, por piedade, se perdoa,
mas os poderosos serão provados com rigor.
Pois o Senhor do universo a ninguém teme.
Não se deixa impressionar pela grandeza;
pequenos e grandes, foi ele quem os fez:
com todos se preocupa por igual,
mas aos poderosos reserva um julgamento severo.
A vós, portanto, soberanos, me dirijo,
para que aprendais a ser sábios e não pequeis.
Sb, 6, 7-10.
Os medievais não eram igualitários. Para eles, todas as criaturas de Deus eram desiguais.24 Até mesmo aos Seus olhos: na Teologia, Ele ama todas as Suas criaturas. Todas elas têm um papel específico no conjunto de sua Obra, a Criação, mas as ama desigualmente, porque, em Sua Sabedoria divina, assinalou a cada uma delas um lugar hierárquico específico na harmonia do conjunto25 (do mesmo modo, Deus ama especialmente algumas famílias, como também, de modo especial, rejeita outras).26 Por viverem em uma sociedade estamental, não concebiam uma Eternidade que também não fosse, a seu modo, escalonada e hierarquizada, à maneira dos antípodas. Por isso, quem na Terra estava em cima, no poder (secular ou religioso), se caísse no Inferno, ficaria ainda mais no fundo.
Assim, com uma notável liberdade crítica judicativa, os pintores criaram cenas terríveis em que pessoas dos mais elevados níveis sociais sofriam os piores horrores do Inferno, consequência eterna de seus pecados cometidos no mundo. Pela soberba, pela cupidez, pela vaidade.
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O Inferno (c. 1410). Detalhe do afresco da Cappella Bolognini, Basílica de São Petrônio (Bolonha) de Giovanni di Pietro Faloppi (ou Falloppi, também conhecido como Giovanni da Modena [c. 1379-1455]).
Uma das imagens infernais mais impressionantes criadas pela arte medieval a respeito do Inferno é o afresco da Cappella Bolognini, na Basílica (gótica) de São Petrônio, em Bolonha (imagem 4). Giovanni da Modena (c. 1379-1455), seu autor, elaborou cenas angustiantes dos suplícios, certamente baseando sua geografia infernal na descrição da Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321). Não há espaço para analisar todos os grupos de danados. Selecionamos apenas um detalhe (imagem 5). Ainda com sua coroa, um rei tem as costas e as nádegas feridas por dois diabos com cabeças de javali (como os reis medievais apreciavam caçar javalis!); um homem é furado no ânus e assado, como um porco (com o espeto perpassando outro, que ainda sofre uma mordida de um dragão na cabeça). Acima, uma mulher e um religioso são feridos por cobras e, juntamente com um idoso, são flagelados por outros diabos. Deitada em uma pedra, à esquerda, uma apavorada mulher é atacada por outro demônio, que a estrangula, a sufoca com o joelho em seu peito, a esgoela, e enfia um espeto (aparentemente com carne) em sua boca.
Todos estão nus, indício da verdade revelada, desvelada. Ninguém oculta nada de Deus (1Sm 16, 7; Rm 8, 27).27 No século XV, a obra de arte ainda conservava uma característica tipicamente medieval: era uma oferenda, ajudava o fiel a entrar em comunicação com o invisível, no caso, com o que o aguardava, caso não fosse um bom cristão. A imagem do Inferno deveria despertar o terror sagrado, o arrependimento.28
III. Temores filosóficos
Aquest ordonament mateix, Sènyer, serà en infern, car aquells qui seran pus pecadors estaran en lo pus abís loc d'infern e.l pus luny de la vostra presència; e aquells qui no seran tan pecadors, estaran en loc on hauran menys de pena que los altres jussans; on, aquí seran rencs, segons que.ls pecadors són diverses, car los ergullosos estaran en un loc, e los homeiers en altre, e los descreents en altre, e los cobeus en altre, e.ls traïdors en altre, e los mentiders en autre, e los glots en autre.
Este mesmo ordenamento, Senhor [o do Paraíso] existirá no Inferno, pois aqueles que mais pecaram estarão no mais profundo abismo do Inferno e mais distantes de Vossa presença. E aqueles que não foram tão pecadores estarão em um lugar onde sofrerão uma pena menor que os outros inferiores. Lá eles serão aleijados, conforme a diversidade de seus pecados, pois os orgulhosos estarão em um lugar, os homicidas em outro, os descrentes em outro, os cobiçosos em outro, os traidores em outro, os mentirosos em outro, e os glutões em outro (trad.: Ricardo da Costa).RAMON LLULL, Livro da contemplação, Volume Primeiro, Livro Segundo, cap. LIX, 12.29
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O Juízo Final (1306), de Giotto (1266-1337). Afresco, Cappella degli Scrovegni (Capela Arena), Pádua, Itália.
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Detalhe do afresco O Juízo Final (1306), de Giotto (1266-1337). Cappella degli Scrovegni (Capela Arena), Pádua, Itália.
Esse temor do juízo de Deus – e de suas conseqüências – foi uma importante baliza sobre a qual os medievais construíam seus tratados morais. Esse medo era considerado salutar, moralizante, pedagógico, algo que agia poderosamente para se evitar o pecado e praticar o bem. O embasamento era, naturalmente, a Bíblia. Por exemplo, no Eclesiástico: “O temor do Senhor expulsa o pecado; quem não tem este temor não poderá ser justo” (27-28); nada é melhor do que o temor do Senhor e nada é mais doce do que seguir Seus mandamentos (23, 37).30
As imagens filosófico-literárias que Ramon Llull oferece são muito intensas, semelhantes às penas infernais do Juízo Final de Giotto (imagem 6): lá horríveis serão os fedores de enxofre e de suor dos corpos; até os diabos sofrem! Ademais, as almas sofrem porque suas três potências (a memória, a inteligência e a vontade) estão em eterno conflito: a memória tem muito remorso de lembrar o Paraíso perdido, a inteligência de entender o que entende (que perdeu o amor de Deus) e a vontade de desejar e não poder ter seu desejo realizado.31 Claro que a Arte representa dores físicas: no detalhe do Juízo Final de Giotto (imagem 7), religiosos têm seus órgãos sexuais atacados (um é pendurado por sua língua), mulheres são assadas vivas, serradas, e são obrigadas a engolir líquidos incandescentes. Tudo por toda a Eternidade!
Mais: assim como o afresco O Inferno de Giovanni da Modena (c. 1379-1455) (imagem 4), o filósofo afirma que Maomé, por ter sido “um sarraceno falso e injusto”, e “pela injustiça e luxúria de sua seita terem sido más”, ele está com Lúcifer a receber eternamente o mal que causou:
En Mafumet, e açò mateix d'En Lucifer, fo injust e fals sarraí, e car la sua injustícia e luxúria e secta foren males, cové-li guardó de mal per mal; e car fo gran mal en ço que molts hòmens posa en error, cové guardó sia gran en mal; e car durava lo mal d'aquelles, cové que.l guardó dur longament; e açò mateix de les altres formes; e aquestes colpes guanyades són les rails e.ls mals mèrits.
Maomé, assim como Lúcifer, foi um sarraceno injusto e falso, e como sua injustiça, sua luxúria e sua seita foram más, convém que sua recompensa seja o mal pelo mal. E como foi grande o mal por ter colocado muitos homens no erro, convém que receba um grande mal; e como fez durar o mal daqueles, convém que sua recompensa seja muito longa, e o mesmo das outras formas. Estes golpes recebidos são as raízes e os males, méritos.32
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O Inferno (c. 1410). Detalhe do afresco da Cappella Bolognini, Basílica de São Petrônio (Bolonha) de Giovanni di Pietro Faloppi (ou Falloppi, também conhecido como Giovanni da Modena [c. 1379-1455]).
Llull está de acordo com Tomás de Aquino: Maomé sofre, no Inferno, horrores demoníacos! Como no afresco de Giovanni da Modena (imagem 8), em que o Profeta está amarrado, em uma pedra, logo acima de Lúcifer, com cobras translúcidas nas pernas e no tronco e um diabo alado a estrangulá-lo, a sufocá-lo. “Grande será a pena que terá Maomé, que proporcionou a tantos homens estarem no Inferno, pois na pena de cada um será multiplicada a pena de Maomé”.33
Conclusão
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A Besta do Aqueronte (1475), detalhe do MS 30, folio 17 (Valenciennes, França, têmpera colorida, folha dourada, pintura de tinta e ouro em pergaminho), atribuído a iluminista Simon Marmion (c. 1425-1489). Na iluminura, a alma errante do cavaleiro Thondal (figura nua à esquerda da cena) contempla as punições infernais dos gananciosos. O iluminador imaginou a entrada do Inferno como a boca da besta Aqueronte (nome da mitologia grega que se referia a um rio no Hades). Esta criatura revira seus olhos horríveis e escancara sua boca. Dois diabos empalados em seus dentes afiados mantêm sua boca aberta. No interior, as almas suportam um indescritível tormento em uma fornalha incandescente. As chamas deste poço são representadas com suaves pinceladas de azul, vermelho, laranja, amarelo e verde no lábio superior do animal. Na Idade Média, a alma eram comumente representada como uma figura humana nua para expressar a ideia de que as armadilhas do mundo material desapareciam com a morte corporal. Por fim, quatro demônios se encarregam de não deixar ninguém escapar da boca infernal da besta.34
A imagem dos horrores do Inferno esteve muito presente no imaginário medieval. Na arte românica, para lembrar o Dia do Juízo Final, dia em que as trombetas soariam, retumbantes, para que todos os homens, de todos os tempos, se levantassem de suas tumbas e comparecessem perante o Juiz que exporia publicamente os feitos e a sorte eterna de cada alma, de Adão ao último dos homens. Nada ficará oculto a ninguém, pensavam: todos os pecados, todas as virtudes, todas as consequências posteriores dos atos seriam revelados aos olhos de toda a Humanidade. Também os castigos – ou prêmios – aumentariam conforme essas consequências.35
Os medievais consideravam o Juízo Final como o fim do mundo, o fim da ordem terrestre das coisas, desde a queda de Adão e sua expulsão do Éden, o fim da História, julgamento definitivo e uníssono do gênero humano.36 Então Deus ressuscitaria todos os mortos: suas almas, que já haviam passado pelo juízo particular e, ou gozavam a alegria do Céu ou sofriam as penas do Inferno, seriam novamente reunidas aos seus corpos que, por sua vez, milagrosamente levantar-se-iam do pó onde descansavam graças ao chamado de seu Criador. No Apocalipse, o trono, as trombetas e o livro de que trata a poesia Dies Irae remetem a uma passagem sobre a ressurreição.37
As almas seriam reunidas aos seus corpos para que, ou sua felicidade aumentasse no Céu (pois agora desfrutariam novamente de seus corpos, não mais perecíveis, mas gloriosos), ou seu padecer no Inferno recrudesceria (pois sofreriam na carne os tormentos da fornalha).38
Imaginar os tormentos do Inferno (e o dia do Juízo Final) exerceu sobre as mentes de então um poderoso efeito civilizador.39 Fez parte da construção da civilização ocidental. Uma das mais intensas e emotivas definições do Inferno encontra-se em um sermão de São Bernardo de Claraval (1090-1153). São palavras impactantes e que sintetizam o sentimento de um medieval a respeito do tema que escolhemos apresentar. Por isso, com elas nos despedimos:
Qui in inferno sunt, redimi non possunt, quia in inferno nulla est redemptio (...) O regio dura et gravis, regio extimescenda, regio fugienda! Terra oblivionis, terra afflictionis, terra miseriarum, terra tenebrarum, in qua nullus ordo, sed sempiternus horror inhabitat! Locus letifer, in quo ignis ardens, ubi frigus rigens, vermis immortalis, foetor intolerabilis, mallei percutientes, tenebrae palpabiles, confusio peccatorum, innodatio vinculorum, horribiles daemonum facies! Totus tremo atque horreo ad memoriam istius regionis, et concussa sunt omnia ossa mea. Quomodo cecidisti, Lucifer, qui mane oriebaris? Omnis lapis pretiosus operimentum tuum; modo subter te sternitur tinea et operimentum tuum vermis. O Deus, quanta distantia inter oprimentum pretiosi lapidis et opertorium vermis, inter delicias paradisi et tineam inferni! Scio quia paratus est ignis ille diabolo et angelis eius, ubi sine fine finientur, sine morte morientur, torquebuntur sine cessatione. Vivens igitur in infernum descende; percurre mentalibus oculis tormentorum officinas, fuge scelera et vitia, pro quibus scelerati et vitiosi perientur. Habe odio iniquitatem et dilige legem Domini, et in tam formidolosis nundinis fac sarcinam tuam odium peccati.
Os que estão no Inferno não podem mais serem redimidos, porque no Inferno não há redenção (...) Trata-se de uma região dura e pesada, região terrível, região repelente! Terra do esquecimento40, terra da aflição, terra miserável, terra tenebrosa, onde não há ordem, somente o eterno horror inabitável41! Lugar da morte, do fogo ardente, do frio rigoroso, dos vermes imortais42, do fedor intolerável, dos martelos percucientes43, das trevas palpáveis44, da confusão dos pecados, do barulho das cadeias, das horríveis faces dos demônios! Tremo dos pés à cabeça e meus ossos se desconjuntam ao pensar nesse horrendo lugar! Como caístes do Céu, Lúcifer, filho da aurora? Estavas revestido de pedras preciosas, e agora, debaixo de teu leito e em teu leito, vermes. Oh, Senhor, quanta distância entre um manto de pedras preciosas e outro de vermes, entre as delícias do Paraíso e as trevas infernais! Bem sei que esse fogo está reservado ao diabo, a seus anjos e a homens como eles! Aquilo é como consumir-se eternamente, morte interminável, tormento infindável! Desce agora, portanto, em vida, ao Inferno, percorre com os olhos do espírito essas oficinas de tormento e foge do crime e do vício que causaram a morte aos malvados e pecadores! Odeia a iniquidade e ama a Lei do Senhor, e nesses formidáveis mercados compra o ódio do pecado (os grifos são nossos).
BERNARDO DE CLARAVAL. Sermão 42, 5 e 6.45
Dá ou não dá medo?
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Fontes
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PLATÃO. A República (introd., trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
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Bibliografia
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ECO, Umberto. “Apontamentos sobre Beato”. In: Da Árvore ao Labirinto. Rio de Janeiro: Record, 2013, p. 239-271.
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HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naif, 2010.
SILVEIRA, Sidney. “Deus não castiga?”. In: Contra Impugnantes, 02 de julho de 2011.
Notas
- 1. Citado em HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naif, 2010, p. 357, quem magistralmente relaciona a imagem infernal de Memling com o texto de Dionísio.
- 2. RAMON LLULL. Doutrina para crianças (c. 1274-1276) (trad.: Ricardo da Costa e Grupo de Pesquisas Medievais da UFES III). Alicante: IVITRA, 2010, p. 88
- 3. CORPUS CHRISTIANORUM. Continuatio Mediaeualis 215. RAIMVNDI LVLLI OPERA LATINA 7-9 (edidit Jaume MEDINA). Turnhoult, Brepols, 2009.
- 4. COSTA, Ricardo da. “A Morte e as Representações do Além na Doutrina para crianças (c. 1275) de Ramon Llull”. In: SANTOS, Franklin Santana (org.). A Arte de Morrer - Visões Plurais - Volume 3. Bragança Paulista, SP: Editora Comenius, 2010, p. 118-134.
- 5. Maravilhosa explicação teológica do Prof. Armando Alexandre dos Santos, a quem agradecemos.
Pouquíssimas são as almas que vão direto para o Céu após a morte. Para nele entrar, a santidade de Deus exige que a alma esteja completamente purificada, sem mancha de pecado venial ou falta leve. A grande maioria deve passar por um lugar de purificação – o Purgatório – onde a maior parte será expurgada.
Em O nascimento do Purgatório, Jacques Le Goff (1924-2014) datou o início dessa crença no século XIII, relacionando-a às transformações socioeconômicas e culturais pelas quais passava o Ocidente. Afirmou que a doutrina do Purgatório teve causas meramente imanentes – como se o clero da Igreja não acreditasse em sua existência, nem tivesse razões transcendentais para afirmá-lo (inclusive anteriores a esse período). Le Goff datou a existência do Purgatório naquele período, e não antes, porque foi nele em que a palavra surgiu na documentação, como nome próprio e lugar no Além. Contudo, o próprio medievalista citou uma extensa base bíblica e citações patrísticas (a partir do século II) que fazem referência a um fogo purificador, fogo purgatório, etc., exigência semântica hipercrítica para datar a crença do Purgatório a partir apenas desse século. Ver LE GOFF, Jacques. O nascimento do Purgatório. Lisboa: Estampa, 1993. Agradecemos também à Profa. Deborah Azevedo da Silva por suas observações a respeito do tema. - 6. As opiniões de vários teólogos modernistas, inclusive do papa João Paulo II (1920-2005), estão em desacordo com a Bíblia e com toda a tradição teológica católica (e, portanto, também do pensamento medieval a respeito). Para uma breve exposição do problema, ver SILVEIRA, Sidney. “Deus não castiga?”. In: Contra Impugnantes, 02 de julho de 2011.
- 7. Em contrapartida, “...a perda contemporânea do sentimento religioso fez da morte uma provação aterrorizante, um trampolim para as trevas e o incognoscível”. DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000. Na pista de nossos medos. São Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 122.
- 8. “Uma coisa é adorar uma pintura, outra aprender por uma história pintada o que se deve adorar. Porque o que a escrita proporciona aos que a leem, proporciona-o a pintura aos incultos que a veem, porque os ignorantes veem nela o que devem fazer, nela leem os que são néscios nas letras, de modo que sobretudo aos gentios a pintura lhes serve de lição” (Aliud est enim picturam adorare, aliud per picturae historiam quid sit adorandum addiscere. Nam quod legentibus scriptura, hoc idiotis praestat pictura cernentibus, quia in ipsa ignorantes uident quod sequi debeant, in ipsa legunt qui litteras nesciunt, unde praecipue gentibus pro lectione pictura est) (trad.: Carlos Nougué), GREGORIUS MAGNUM. “Epistola ad Serenus" (XI, 10). In: Registrum Epistularum. Turnhout: Brepols, 1982 (CCSL 140A).
- 9. Nesse aspecto, Huizinga é taxativo: “Como na literatura budista, quando alguém se depara com os feitos de um bodhisattva e se escuta o aplauso dos seres divinos sob a forma de chuva de flores, luzes e um leve estremecer da terra, da mesma forma Dionísio [o Cartuxo], com ânimo mais melancólico, ouve como todos os abençoados e justos, as esferas celestes, todos os elementos, e até mesmo os seres ignorantes e os objetos desalmados, clamam pela condenação do injusto”, HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média, op. cit., p. 356-357.
- 10. WILLIAMS, John. Early Spanish Manuscript Illumination. New York: George Braziller, 1977, p. 119. Para um interessante – e instigante – ponto de vista sobre esse importante autor, ver ECO, Umberto. “Apontamentos sobre Beato”. In: Da Árvore ao Labirinto. Rio de Janeiro: Record, 2013, p. 239-271. Uma excelente análise dessa iluminura é feita por M. GÓMEZ, Nora. “Las miniaturas hispanas de temática infernal en los siglos X y XI”. In: GUIANCE, Ariel (ed.). Entre el cielo y la tierra. Escatología y sociedad en el mundo medieval. Buenos Aires: Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – Instituto Multidisciplinario de Historia y Ciencias Humanas, 2009, p. 165-206 (especialmente as páginas 202-206).
- 11. Durante a maior parte da Idade Média, ainda era possível algum grau de discussão sobre o destino dos justos após a morte – por exemplo, se eles gozariam da imediata visão beatífica de Deus ou se teriam de aguardar a ressurreição dos corpos, no fim do mundo, para desfrutar de Sua presença. À medida que o período terminava, porém, essas discussões sobre a condição dos eleitos no Além cederam lugar a definições dogmáticas da Igreja que puseram termo às indagações sobre o assunto. O Segundo Concílio de Lyon (1274), ratificado por Bento XII, em 1336, e pelo Concílio de Florença (1438-1445), definiram, sob pena de excomunhão para quem o negasse, que as almas dos justos entram em posse do céu antes da ressurreição dos corpos. Cf. Biblia Comentada Straubinger. Tlalnepantla: Editora de México, 1969, Eclesiastes IX, 5, nota 5. Os medievais nunca duvidaram, porém, do castigo imediato que os maus, os pecadores e os injustos sofrem imediatamente no pós-vida – no inferno, justamente o tema deste trabalho. E era, deveras, isto que os enchia de terror.
- 12. Santo Tomás de Aquino (1225-1274) o explica: “Se é evidente, pelo que se acabou de dizer, que tanto a felicidade quanto a miséria futuras realizam-se principalmente na alma, secundariamente, porém, e por certa derivação, no corpo, a felicidade ou a miséria da alma não dependem da felicidade ou da miséria do corpo, mas mais dela mesma. Como, após a morte e antes da ressurreição dos corpos, umas almas apresentam-se com a merecida bem-aventurança, outras, com a merecida miséria, isso evidencia que, já antes da reassunção dos corpos, algumas almas gozarão da felicidade, conforme atesta a Segunda Carta aos Coríntios: ‘Todos nós sabemos que, quando for destruída essa tenda em que vivemos na terra, teremos no céu uma casa feita por Deus, uma habitação eterna, não feita por mãos humanas’; e: ‘Cheios de confiança desejamos sair deste corpo para habitar com o Senhor’ (II Cor 5, 18). Outras almas, porém, viverão na miséria, conforme se lê no Evangelho de São Lucas: ‘O rico morreu, e foi sepultado. Achando-se em tormentos no inferno...’ (Lc 16, 22, 23)”. SANTO TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia (trad. e notas: D. Odilão Moura, OSB). Rio de Janeiro: Presença, 1977, cap. CLXXVIII (A pena dos condenados existirá já antes da ressurreição).
- 13. Segundo o entendimento medieval, antes da morte e ressurreição de Jesus Cristo, o Céu estava fechado à entrada dos justos e dos santos. Portanto, aqueles que morreram na amizade de Deus antes da redenção da humanidade realizada pelo Salvador, estavam retidos em uma parte dos Infernos chamada aqui pelo Evangelho de Seio de Abraão – isto é, o local onde os justos e santos que morreram antes de Cristo aguardavam a chegada do Redentor.
O próprio Ramon Llull trata deste local na Doutrina para crianças (XCIX. Do Inferno, 1): “O Inferno está no meio de um lugar que fica dentro do coração da Terra, e tal lugar é trancado e fechado, e ali existe pena por todos os tempos. Essa pena acontece em quatro lugares: um é o Inferno, onde estão os danados que nunca sairão; outro é o Inferno que é chamado Purgatório, no qual o homem faz penitência porque não a cumpriu neste mundo; o terceiro Inferno é o lugar onde entraram os profetas antes que o Filho de Deus fosse encarnado, e esse Inferno é chamado Abraão; o quarto Inferno é aquele onde entraram as crianças que morreram e não foram batizadas”.
A nota explicativa de nossa tradução (n. 102) sobre o Abraão nos fornece mais detalhes: “O nome que Llull dá ao terceiro Inferno (Abraão), e que tem a sua origem no Evangelho segundo Lucas (XVI, 22-23), traz a seguinte questão, comum para os pensadores medievais: o que acontece com os profetas que viveram antes de Cristo, se Ele é a única salvação e redenção? Estariam perdidos e danados só por terem vivido antes da vinda redentora de Cristo? Não. Assim, Llull os coloca em um espaço infernal para que esperem a chegada de Cristo, e dá a este inferno o nome de Abraão, seguindo a tradição judaico-cristã. Após a vinda de Cristo e após Ele ter redimido a Humanidade, os profetas podem então ir para o Céu. Hoje não pensamos assim (do ponto de vista da concepção teológica moderna). Os medievais tinham aqui um problema: como coordenar a eternidade com o tempo. Cristo redime os homens no tempo; se os homens que viveram antes de Cristo estão redimidos antes da Encarnação de Cristo, para que Ele teve que Se encarnar no tempo? A teologia atual diria que Cristo, embora Se encarne para nós em um momento preciso de nossa História, foi, é e sempre será o mesmo Cristo, isto é, Deus encarnado, desde a Eternidade até a Eternidade. Caso contrário, haveria mutabilidade em Cristo, e conseqüentemente em Deus, e Deus seria um ser diferente antes do ano zero e depois do ano zero, etc.”. - 14. Não é desproposital a alteração da tradução da Bíblia de Jerusalém do termo Inferno – ou Abismo – por mansão dos mortos. Uma mansão não é, em tese, um lugar desagradável. Ainda que seja dos mortos, continua uma mansão – lugar aprazível, amplo, com um certo requinte. A palavra não enfatiza o sofrimento, próprio da definição do Inferno (todos os males e nenhum bem), nem a profundeza escura de Abismo.
A Igreja sempre chamou os locais que não o Céu no Além de “Infernos” – nestes inclusos: a) o Purgatório; b) o Limbo; e c) o Inferno dos demônios, o Inferno propriamente dito. Após o Concílio Vaticano II, o clero “progressista” popularizou o termo mansão dos mortos para se referir a esses “infernos”: tanto ao Purgatório quanto ao Limbo, e até mesmo ao Inferno de fato – tal como na tradução da Bíblia de Jerusalém para a passagem citada (Lc 16, 19-25). Afinal, a expressão “infernos” ou “inferno” assusta, ofende a sensibilidade contemporânea e não combina com a imagem de um Deus que é apenas “bondade”. - 15. SANTO TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia, op. cit., cap. CLXXIV (Em que consiste a miséria do homem quanto à pena de dano).
- 16. BELTRAMI, André. O Inferno existe. Provas e exemplos. Niterói: [s.n.], 1945 (cf. Prefácio).
- 17. BELTRAMI, André, 1945 (cf. cap. I).
- 18. O Doutor angélico o explica: “Conhecerão, porém, aqueles que viveram virtuosamente, que conseguiram o que desejaram como ótimo. Os maus afligir-se-ão devido aos pecados cometidos, não porque os pecados os aborreçam, pois se lhes fosse dada oportunidade, ainda os cometeriam e os prefeririam a Deus: afligir-se-ão porque não poderão possuir aquilo que escolheram, e porque poderiam ter aquilo que rejeitaram. Assim as suas vontades permanecerão perpetuamente obstinadas no mal, e ainda afligir-se-ão muitíssimo pela culpa adquirida e pela glória perdida. Chama-se esse sofrimento remorso de consciência, e, na Escritura, ele é chamado de verme, conforme se lê em Isaías: “Os vermes não morrerão para eles” (Is 66, 24). SANTO TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia, op. cit., cap. CLXXV (Os pecados mortais não serão perdoados após esta vida; sê-lo-ão, porém, os veniais).
- 19. Novamente Santo Tomás: “Para que não se pense ser absurdo sofrer a alma separada do corpo ação do fogo corpóreo, deve-se considerar que não é contra a natureza da substância espiritual ser retida pelo corpo [...] E porque aquele fogo, não por sua natureza, mas por virtude divina, tem capacidade de reter uma substância espiritual, muitos convenientemente afirmaram que ele age sobre a alma como instrumento da justiça divina vindicativa, não agindo sobre a substância espiritual como age sobre os outros corpos, aquecendo, secando ou dissolvendo, mas prendendo, como foi dito”. SANTO TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia, op. cit., cap. CLXXX (Pode a alma sofrer a ação do fogo corpóreo?).
- 20. Já em A República de Platão, os justos irão para a direita e os injustos para a esquerda: “No espaço entre elas, estavam sentados juízes que, depois de pronunciarem a sua sentença, mandavam os justos avançar para o caminho à direita, que subia para o céu, depois de lhes terem atado à frente a nota de seu julgamento; ao passo que, aos injustos, prescreviam que tomassem à esquerda, e para baixo, levando também atrás a nota de tudo quanto haviam feito”. PLATÃO. A República (introd., trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 488, Livro X, 614c).
- 21. Em Jerusalém, a geena era um vale onde hebreus apóstatas sacrificavam seus filhos ao ídolo Moloc, fazendo-os antes passar pelo fogo. O rei Josias (c. 649-609 a. C.), a fim de acabar com tal prática, mandou aterrar o vale, transformando-o em depositório de cadáveres, lixo, detritos, e cujo fogo estava sempre aceso. Cristo, para tornar a imagem do Inferno mais sensível, tomou a imagem desse vale – que no Além é o local da segunda morte, a verdadeira morte, morte da alma.
- 22. A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Edições Paulinas, 1991, p. 1857.
- 23. “...um só é o Vosso Mestre e todos vós sois irmãos” (Mt 23, 8); “O próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus. E se somos filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois sofremos com ele para também com ele sermos glorificados (Rm 8, 16-17)”.
- 24. A natureza humana é a mesma para um imperador e um escravo, para um santo e um pecador, para um homem e uma mulher, etc. A natureza humana é a mesma para todos. Mas Deus quis que ela comportasse múltiplos elementos acidentais de diferenciação. É a partir desses elementos acidentais – e note que acidental não significa pouco importante – que se faz a maravilhosa harmonia do conjunto. Agradeço a explicação desse importante detalhe conceitual por parte do Prof. Armando Alexandre dos Santos (originalmente, escrevemos “Os medievais não eram igualitários. Para eles, todos, sem exceção, eram desiguais por natureza....”, e o amigo nos corrigiu).
- 25. “Por que um dia prevalece sobre outro, enquanto a luz, todo o ano, vem do sol? No pensamento do Senhor é que foram separados, ele diversificou as estações e as festas. Elevou e santificou alguns dias, colocou outros no número dos dias comuns. Todos os homens também vêm do solo, da terra é que Adão foi formado. Em sua grande sabedoria o Senhor os distinguiu, diversificou os seus caminhos. Abençoou alguns, consagrou-os, colocou-os junto de si; amaldiçoou outros, humilhou-os e derrubou-os de seus lugares. Como a argila não mão do oleiro, que a amolda a seu bel-prazer, assim são os homens na mão de seu Criador, que lhes retribui segundo o seu julgamento” (Ecli, 33,7-12).
- 26. A Bíblia contém inúmeros casos de bênçãos e maldições que passaram de geração a geração através da História. Por exemplo, “Eu te abençoarei e multiplicarei a tua estirpe como as estrelas do céu e como a areia que há sobre a praia do mar; a tua descendência possuirá as portas de seus inimigos. E na tua descendência serão benditas todas as nações da terra, porque obedeceste à minha voz” (Gn 22,17-18); “Eu sou o Senhor teu Deus forte e zeloso, que vinga a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e quarta geração daqueles que me odeiam, e que usa de misericórdia até mil gerações com aqueles que me amam e guardam os meus preceitos” (Ex 20,5-6); “Eis que eu ponho hoje diante dos vossos olhos a bênção e a maldição; a bênção, se obedecerdes aos mandamentos do Senhor vosso Deus, que eu hoje vos prescrevo; a maldição, se não obedecerdes aos mandamentos do Senhor vosso Deus, mas vos apartardes do caminho que eu hoje vos mostro, e fordes após os deuses estranhos, que não conheceis” (Deut 11, 26-28).
- 27. “Mas Iahweh disse a Samuel: ‘Não te impressione a sua aparência nem a sua elevada estatura: eu o rejeitei. Deus vê não como o homem vê, porque o homem toma em consideração a aparência, mas Iahweh olha o coração’”, 1Sm 16, 7.
- 28. DUBY, Georges. “Arte e Sociedade”. In: DUBY, Georges e LACLOTTE, Michel (coord.). História Artística da Europa. A Idade Média. Tomo I. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997, p. 108 e 113.
- 29. RAMON LLULL. Obres essencials II. Barcelona: Editorial Selecta, 1957, p. 226.
- 30. A ideia de que o temor de Deus é não somente algo salutar, mas o princípio da Sabedoria, é recorrente em todo o Antigo Testamento (pelo menos sete vezes: Salmos 90, 10; Provérbios 1, 7; 9, 10; 15, 33; Eclesiástico 1, 16; 1, 25 e 21, 13), Armando Alexandre dos Santos.
- 31. RAIMUNDO LÚLIO. Félix, ou O Livro das Maravilhas. Parte II. O homem - o Paraíso - o Inferno (apres., trad. e notas de Ricardo da Costa). São Paulo: Editora Escala, 2009, p. 337.
- 32. RAMON LLULL. “Arbre de ciència”. In: Obres Essencials I. Barcelona: Editorial Selecta, 1957, p. 730.
- 33. RAIMUNDO LÚLIO. Félix, ou O Livro das Maravilhas. Parte II. O homem - o Paraíso - o Inferno, op. cit., p. 341. Para as similitudes descritivas do sofrimento de Maomé no Inferno entre Santo Tomás e Llull, ver COSTA, Ricardo da. “Maomé foi um enganador que fez um livro chamado Alcorão”: a imagem do Profeta na filosofia de Ramon Llull (1232-1316). In: Revista NOTANDUM, n. 27, Ano XIV, set-dez 2011, Editora Mandruvá - Univ. do Porto, p. 19-35.
- 34. Ver The Beast Acheron, The J. Paul Getty Museum.
- 35. O poema Dies Irae é uma das mais famosas melodias do canto gregoriano, belo fruto artístico desta reflexão sobre o Juízo Final. Seu autor e período de elaboração são incertos; talvez o século XIII, ou antes. No Missal Romano de São Pio V, ele é parte da Missa de Finados e do Ofício dos Mortos. MISSALE ROMANUM. Ex Decreto SS. Concilii Tridentini Restitutum. Auctoritate S. Pii Pp. V promulgatum b. Joannis Pp. XXIII Cura Recognitum. Roma, 1962. Cf. a Liturgia do dia 02 de Novembro – Missa de Finados.
- 36. Já Marc Bloch (1886-1944) notara que o Cristianismo é uma religião de historiador e que, por isso, tem noção de uma consumação futura da história: “Outros sistemas religiosos fundaram suas crenças e seus ritos sobre uma mitologia praticamente exterior ao tempo humano; como Livros sagrados, os cristãos têm livros de história, e suas liturgias comemoram, com os episódios da vida terrestre de um Deus, os faustos da Igreja e dos santos. Histórico, o cristianismo o é ainda de outra maneira, talvez mais profunda: colocado entre a Queda e o Juízo, o destino da humanidade afigura-se, a seus olhos, uma longa aventura, da qual cada vida individual, cada ‘peregrinação’ particular, apresenta, por sua vez, o reflexo; é nessa duração, portanto dentro da história, que se desenrola, eixo central de toda meditação cristã, o grande drama do Pecado e da Redenção. Nossa arte, nossos monumentos literários estão carregados dos ecos do passado, nossos homens de ação trazem incessantemente na boca suas lições, reais ou supostas”. BLOCH, Marc. Apologia da História ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 42.
- 37. “Vi depois um grande trono branco e aquele que nele se assenta [...] Vi então os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono, e abriram-se livros. Também foi aberto outro livro, o da vida. Os mortos foram então julgados conforme sua conduta, a partir do que estava escrito nos livros. [...] Esta é a segunda morte: o lago de fogo. E quem não se achava escrito no livro da vida, foi também lançado no lago de fogo”, Ap 20, 11-12; 14-15.
- 38. Com este fim, os corpos dos condenados estariam íntegros, mas sem a glória dos beatificados: nem sutis, nem impassíveis, mas pesados e extremamente passíveis, ainda que incorruptíveis. Tudo isto lhes agravará os sofrimentos: seus corpos não serão claros, mas obscuros, pois revelarão as trevas da alma: “Os seus rostos serão de faces queimadas” (Is 13, 8). Ver também SANTO TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia, op. cit., capítulo CLXXVI (Os corpos dos condenados serão passíveis e sem dotes, mas íntegros).
- 39. Por exemplo, quando, na França carolíngia, os clérigos começaram a regular o casamento, uma das preocupações era o combate ao rapto de mulheres que os nobres praticavam. “Viúvas, monjas, jovens (prometidas ou não), esposas, aparecem como outras tantas presas perseguidas por matilhas de homens jovens” – DUBY, Georges. “Moral de los sacerdotes, moral de los guerreros”. In: Obras selectas de Georges Duby (presentación y compilación de Beatriz Rojas). México: Fondo de Cultura Económica, 1999, p. 304.
- 40. SL 88,12.
- 41. Jó 10, 22.
- 42. Mc 9, 44.
- 43. Prov. 19, 29.
- 44. Ex 10, 21.
- 45. OBRAS COMPLETAS DE SAN BERNARDO DE CLARAVAL VI. Sermones varios. Madrid: BAC, MCMLXXXVIII, p. 320-323.